sábado, 6 de outubro de 2007

MUSEU PARA DEFICIENTES: UM APRENDIZADO DE "DOIS SENTIDOS"

RELATOS DE CASOS

Foram eleitos sete casos para relatos significativos. Os atendimentos são sempre diferentes, porém, pode-se considerar que têm uma base pedagógica representada pelos exemplos aqui relatados, com variações, que são comentadas para casos especiais.

1 - Fundação "Padre Chico" para Cegos - 1o. e 2o. Graus (o primeiro atendimento da série) _ no MIB

Oitenta e oito alunos chegaram às portas do MIB em fila indiana e guiados no trajeto por responsáveis, que ofereciam o braço para que o primeiro aluno apoiasse sua mão e assim fosse conduzido e conduzisse da mesma maneira o seguinte, e desta forma sucessivamente.
A primeira aluna que chegou à porta parou e afirmou categoricamente que ali não entraria. Perguntado o porquê, disse que aquele local não era Museu e sim Hospital, pois tinha cheiro de "remédio e de álcool". Realmente, naquele dia havia sido feita a desinfecção profilática de diversos animais da exibição. Um dos pesquisadores do MIB aproximou-se para dissuadi-la e explicar o fato. Não houve necessidade. Quando aproximou-se da aluna, esta lhe disse com extrema convicção: "—Aqui não é Hospital, não! Porque médico não pode usar perfume e você está perfumado!!! Eu entro!"
Esta foi a primeira experiência contundente e representativa do desafio que tínhamos às mãos. Todos os sentidos, que não a visão, estavam extremamente aguçados e sendo totalmente utilizados por cada um dos visitantes.
Os alunos que estavam entre nós eram deficientes visuais congênitos e totais. Tinham idades que variavam entre quatorze e vinte e sete anos. O mais velho, um rapaz muito educado e delicado ao manusear as peças, tinha uma curiosidade um pouco maior do que a média de seus colegas. Quando lhe foi apresentada uma serpente não peçonhenta, Falsa-
Coral (Oxyrhopus trigeminus) viva, a mesma tinha sua cabeça contida entre os dedos do pesquisador, para evitar alguma mordida acidental, já que o rapaz não a via. Assim como os outros colegas, ele "via" as formas e as cores vermelha, preta e branca distribuídas em anéis. Como os outros ele "via" a textura das escamas e a forma cilíndrica, passando seus dedos no sentido cabeça-cauda. Dizia: "- Ela é comprida! Puxa, como é comprida!" Quando seus dedos chegaram à ponta da cauda, esta se soltou de sua mão e foi amparada pelo pesquisador.
Nesse exato momento ele fez uma pergunta que, podemos considerar, mudou o rumo das exibições do MIB. Perguntou: "—Já acabou a cobra? Onde estão as patas?..." Seu espanto foi tamanho, que gritou a última frase. E os pesquisadores que os estavam atendendo ficaram profundamente comovidos com o fato de uma pessoa de vinte e sete anos saber que serpentes são "más", "malditas", "nojentas", peçonhentas, letais e desconhecer que não têm patas. Em avaliação do fato, considerou-se qual seria a figura de "monstro" que um deficiente visual faria de uma serpente.
Uma aranha fixada (preservada em via seca) foi passada de mão em mão. Todos os alunos a manipularam, tatearam, examinaram sem utilizar a visão, somente os dedos. Isto significa que 176 mãos (1.760 dedos) a tocaram e apalparam. Para espanto dos pesquisadores, que coordenavam a apresentação das peças biológicas, quando aquela aranha voltou para sua caixa, estava absolutamente inteira. Há que se comentar aqui que o manuseio desses artrópodos é muito difícil e, por mais delicado que seja um pesquisador (com visão perfeita e muitas vezes, até embaixo de lupa), ao manipulá-los, é quase inevitável que algumas estruturas se quebrem nas articulações e que a peça fique dividida em várias partes.
A aluna que não queria entrar no Museu, pensando ser Hospital, foi a única que não manuseou a serpente viva, por motivo de pavor incontido. Porém, quando entrou no ônibus que os transportava, pediu a um dos responsáveis para voltar ao Museu, porque ela não queria ser a única pessoa diferente do grupo. Levada de volta aos pesquisadores, fez o pedido formal para tocar na serpente. Foi atendida de imediato. Isto lhe valeu o título de coragem e de igual perante o grupo e... valeu a cada pesquisador que a atendeu, um beijo carinhoso e agradecido.
O ocorrido naquele dia tocou tanto a todos que, na mesma tarde desse atendimento especial, foi iniciada a elaboração de planos para atendimento de outros deficientes, com uma didática diferenciada que os fizessem entender com amplitude a importância das serpentes, aranhas, escorpiões e outros animais peçonhentos, no equilíbrio ecológico.

2 - Escola Municipal de Educação Especial "Helen Keller" - 1o. Grau (deficientes auditivos) - no MIB

Em 1986, quarenta alunos e oito professores especializados responsáveis, compunham um grupo muito disciplinado e interessado em ver serpentes, aranhas e escorpiões vivos. Por meio de comunicação gestual para deficientes auditivos, os professores traduziam as frases verbalizadas pelos educadores do Museu. Esta tática "perfeita" funcionou por poucos momentos, pois os alunos queriam "ouvir" os pesquisadores expressando-se por eles mesmos.
Foi nesse contato e com esse desafio que se percebeu, pela primeira vez, que atender a deficientes de qualquer tipo e grau é um aprendizado "de dois sentidos". Nosso esforço em nos fazermos entender era incentivado por todos, ao mesmo tempo em que pilheriavam por nossa falta de habilidade gestual. Isto foi, além de um aprendizado mútuo, uma nova modalidade de dinâmica de grupo de "aquecimento e confraternização". Este processo é utilizado em todos os atendimentos desde aquele dia. As brincadeiras solidárias formam laços que vão muito além da técnica didática.
Em meio a muitas risadas e brincadeiras, foi ensinado aos alunos que as serpentes são absolutamente surdas, pois não têm ouvido externo, nem médio. Isto foi mencionado cientificamente, sem ilações com o grupo ou suas deficiências. Nesse momento, todos, como que tocados por um mesmo raio de entendimento, iniciaram um alarido no auditório em que estavam. Emocionados, confraternizaram-se com as serpentes e passaram a fazer perguntas cada vez mais científicas a respeito, criando a necessidade de se mostrar um crânio de Jibóia (Boa constrictor constrictor) montado e a localização dos ossos (Columela auris) que lhe permitem perceber baixas vibrações provenientes do solo.
Em outro ponto das explicações, foi perguntado a eles se sabiam quantos olhos, geralmente, pode ter uma aranha e um escorpião. Por vários gestos, tentavam dar a resposta certa: 0 (nenhum), 1, 2... Não, era a resposta. 6, 7... Não! Até que um dos professores que os acompanhava, desviou a atenção do pesquisador que dava a aula, com uma pergunta extra. Voltando ao assunto anterior, o pesquisador perguntou novamente: "-Então, quantos olhos pode ter uma aranha?" - Todos os alunos cerraram os punhos e mostraram suas mãos fechadas girando. Leigo que era, o pesquisador assustou-se e perguntou por gestos: "-Querem me dar um murro? Por quê?" -Neste momento todos, inclusive seus professores deram longas gargalhadas, deixando-nos perplexos.
Quando pararam de rir (muito), os professores explicaram que o gesto de punhos cerrados e girando de um lado a outro significa, em linguagem gestual, o número oito. Os alunos simplesmente haviam continuado a numeração do ponto em que haviam parado, antes da interrupção do professor. Era a resposta correta. Aprendemos mais uma entre tantas.
Em visita da mesma escola, em 1989, quando as etiquetas explicativas das vitrinas do MIB já estavam escritas de maneira infantil e coloquial (Federsoni Jr. et al., 1989), um grupo de alunos parou na vitrina da serpente Jararaca (Bothrops jararaca) e fazia gestos de dúvida. Então, todos passaram a fazer o mesmo gesto e foram abordados pelos pesquisadores. Eles tinham dúvida sobre uma palavra: "limítrofe". (em nosso entusiasmo em nos dirigirmos às crianças escrevêramos de modo infantil, porém tínhamos utilizado termos mais difíceis e incompreensíveis para determinadas faixas etárias e para pessoas portadoras de vocabulário mais limitado). Os deficientes auditivos, novamente, nos ensinaram fazendo gestos significando "vizinho", como sinônimo de "limítrofe".
Em outra visita, em 1991, com alunos de 2o Grau, durante uma aula com manuseio, uma das educadoras do MIB tentava fazer-se entender para explicar a função de um órgão das aranhas, porém não conseguia atinar com um gesto que representasse o que queria explicar. Observada de longe por um colega do Museu, que também se esforçava por encontrar um gesto significativo, foi abordada por ele que tentou ajudá-la gesticulando. Neste momento, todos aprendemos uma regra vital para a comunicação com deficientes auditivos. Um dos rapazes que estava atento aos gestos da educadora chamou a atenção da mesma com gestos, passando o dorso da mão no rosto (significando "barbudo") seguido de um gesto de mandá-lo embora e outro menos confessável num trabalho como este, com significado de "parar de perturbá-los".
Aprendemos neste episódio que: por mais dificuldade que uma pessoa tenha em se expressar por gestos, quem está tentando decifrar os códigos está prestando total atenção naquela pessoa; qualquer interferência externa atrapalha a linha de raciocínio. E, talvez, a maior lição tenha sido dada por esse mesmo rapaz: o deficiente quer sentir-se e sente-se útil ao ensinar sua própria linguagem gestual. Forma-se assim, um aprendizado de "dois sentidos".

3- Associação para o Desenvolvimento e Reabilitação do Excepcional - ADERE - Adultas - no MIB

Um grupo de quatorze pessoas de sexo feminino, com idades entre 18 e 42 anos, excepcionais, portadoras de Síndrome de Down, com comprometimento entre limítrofe e médio; todas expressavam-se de maneira razoavelmente inteligível. Duas delas, a mais nova, e a mais idosa, limítrofes, porém com dificuldades de relacionamento, destacaram-se em dois momentos durante as explicações iniciais sobre serpentes e nos deram subsídios valiosíssimos para o atendimento a grupos vindouros.
A mais nova, dona de um vocabulário bastante abrangente e formando frases quase perfeitas, era portadora de uma necessidade obsessiva de ser reconhecida e acarinhada (mesmo que somente com palavras). Levantou a mão, logo no início da explanação, chamando a atenção sobre si, para fazer uma pergunta ao pesquisador que lhes falava. Atendida, fez uma pergunta muito pertinente e, por isso, foi elogiada com: "-Que boa pergunta!" - a qual foi respondida com uma recomendação final de que as outras alunas fizessem, também, suas perguntas. A mesma moça voltou à carga e novo elogio foi feito, para que as outras se sentissem mais à vontade para formular suas dúvidas. Nada ocorreu com as demais alunas. Mas, houve mais algumas dezenas de perguntas da mesma moça sempre seguida de resposta e de um elogio encorajador: "- Que boa pergunta!...".
A explanação seqüencial programada não ficou prejudicada, visto que todas as perguntas eram pertinentes e, de uma forma ou de outra, o objetivo havia sido atingido. Deu-se orientação de que a partir daquele momento elas fariam uma visita monitorada pelo Museu. Todas levantaram-se para se deslocarem até à exibição, quando a mais idosa delas colocou-se, quase que agressivamente, à frente do pesquisador e "a queima-roupa" lhe perguntou: "-Como é que as cobras vivem?" - ele respondeu de maneira simples (e assustada com a investida inesperada da moça) sobre serpentes terrestres, arborícolas e aquáticas e lhe perguntou se havia ficado claro, a resposta foi contundente e absolutamente significativa: "-Entendi! Mas, foi uma boa pergunta, não foi? Eu sou Fulana, muito prazer em te conhecer, viu!!! - virou-se de costas e acompanhou suas colegas...
Estava dado o seu recado e conseguido o seu elogio, esperado durante quase uma hora, enquanto sua colega era reconhecida com: "boa pergunta!" e suas dúvidas eram respondidas.
Aprendemos mais um ponto nessa psicologia excepcional: timidez está diretamente relacionada com a necessidade de reconhecimento imediato. Mais uma vez aprendemos que este é um aprendizado de "dois sentidos".

4- Centro Integrado de Educação Especial "Simone Martins Manuel" - 1o Grau - Excepcionais - no MIB

Um grupo de vinte e duas crianças e adolescentes portadoras de Síndrome de Down e algumas com teratogenias (malformações) múltiplas foi atendido no início de 1997. Dentro do programa apresentado há uma atividade de reconhecimento de texturas de couros curtidos de serpentes. Após pequena explanação, distribuem-se folhas de papel em branco e lápis de cera orientando que os alunos façam decalques esfregando o lápis sobre o papel que está assentado sobre o couro; com isto conseguem transpor para o papel a textura das escamas da serpente. Depois orienta-se que escrevam seus nomes e a data da visita e que guardem o desenho como lembrança daquele passeio (Fig. 4).
Isto foi feito mas, antes que fosse pedido que escrevessem seus nomes, uma das adolescentes com teratogenia significativa de crânio e por conseguinte de rosto e fisionomia, chamou-nos a atenção pela sua expressão de felicidade, adivinhada pelo brilho de seus olhos e por uma tentativa descomunal para que pudéssemos adivinhar também um sorriso maroto em sua fisionomia malformada. Ao nos aproximarmos dela, com os olhos nos apontou seu desenho PERFEITO e seu nome escrito com uma caligrafia de fazer inveja.
Por esse fato foi muito elogiada e seu desenho, já com nome e data, foi mostrado como exemplo para os demais componentes do grupo. Tudo isto seria até normal, caso a atividade terminasse naquele momento.
A segunda parte do programa consta da visita ao Museu, propriamente dito. Na metade do percurso existem serpentes brasileiras vivas. Numa dessas vitrinas, vimos essa moça mostrando uma serpente a seus colegas e, para isto, apontava com as mãos. Só então percebemos que ela apresentava teratogenia total de apêndices superior e inferior. Suas mãos não apresentavam dedos, mas um aglomerado de músculos, pele e unhas; unhas aquelas que nasciam das mais variadas partes das mãos. Não havia a menor condição de que aquela massa formasse pinça para segurar o lápis de cera, muito menos para escrever tão bem e bonito. Porém, contrariando a todas as nossas avaliações e questionamentos, ela havia conseguido desenhar e escrever. E, melhor do que isto tudo, havia transmitido um sentimento de profunda felicidade, não por gestos fisionômicos, mas pelo brilho de seus olhos vivos e encantadores.
Aprendemos que qualquer deficiência pode ser superada desde que dentro da massa corpórea deficiente exista uma fagulha de vontade e uma centelha de objetivo de viver.

5- Colégio "Anglo-Brasileiro" - pré-escola - não alfabetizados - no MIB

Vinte crianças de ambos os sexos, de quatro e cinco anos, orientadas segundo método alternativo de ensino construtivista (Bregunci, 1996) fizeram uma visita orientada ao Museu, porque tinham no conteúdo programático de seu curso de Ciências, um item referente à classificação dos seres vivos e para isto exploravam o tema: "Animais encontrados no jardim".
Atendidos por uma pesquisadora do MIB, foram apresentados a uma grande quantidade de utensílios de cozinha (panelas, pratos, copos, talheres...), todos espalhados aleatoriamente pelo chão. No início, uma enorme confusão instalou-se entre eles, por não entenderem o que havia ocorrido ali. Ao ser explicado que numa cozinha os objetos devem ter lugares corretos para serem guardados, foi pedido que organizassem "a cozinha do Museu".
Imediatamente começaram por colocar copos com copos, xícaras com xícaras, panelas com panelas... Depois de tudo organizado, foi-lhes dito que estava ótimo, mas que ali existiam coisas que quebravam com facilidade e coisas que não quebravam; então que classificassem tudo dessa maneira. Nova arrumação. Novo elogio; porém com o comentário de que ali existiam utensílios que podiam ir ao fogo e outros que não. Que reorganizassem tudo novamente. Isto feito em meio a uma algazarra "organizada". Mostrou-se a todos uma série de animais invertebrados, desenhados na lousa e pedido que os organizassem de acordo com suas semelhanças.
Organizaram-nos, envolvendo-os por meio de circunferências feitas com giz colorido, de acordo com o ambiente onde viviam, de acordo com o número de patas, com a constituição de seus corpos e chegaram à conclusão de que os grupos de animais, vegetais e minerais são classificados pelos cientistas conforme suas semelhanças e diferenças. E, daqueles grupos formados na lousa por cores de giz semelhantes, um foi pinçado e trabalhado posteriormente: o de artrópodos peçonhentos (aranhas, escorpiões, lacraias, abelhas, vespas...) que também são animais encontrados num jardim.
A algazarra contagiante daquelas crianças gerou um novo projeto para atendimento a não alfabetizados de pré-escola e ensinou aos pesquisadores que nunca se deve subestimar a sagacidade de uma criança, quando ela quer aprender e ensinar algo. Novamente o aprendizado de "dois sentidos".

6- Grupo "Morungaba" _ deficientes mentais limítrofes adultos _ no MIBIO

Em meados de 1999, o Museu foi contatado por uma educadora do projeto "Use a sua cidade". A intenção é a de conhecer os prédios, parques, logradouros, museus e igrejas da cidade por dentro. Neste caso, o interesse foi pelo prédio do Instituto Biológico, classificado por eles como "imponente, mas que ninguém sabe o que tem por dentro". Antes da visita, o grupo pesquisou as atividades do Instituto com seus orientadores. A partir dessa pesquisa, durante a visita, fizeram dezenas de perguntas preestabelecidas e visitaram os laboratórios do Museu. Porém, o que mais os impressionou em sua pesquisa anterior e que foi o motivo de 80% das perguntas, foi o porquê de se utilizar cobaias para experiências biológicas. Por algum motivo, especial para eles, consideravam as cobaias como seus "iguais", no contexto de sentirem-se tolhidos pela sua deficiência, da mesma maneira que as cobaias aprisionadas em suas gaiolas.
Esta última observação foi orientada para o fato de os animais existentes no Instituto Biológico terem cuidados veterinários, alimentação suficiente e balanceada e por "disporem-se" a servir aos seres humanos, no intuito de melhorar-lhes a qualidade de vida. Após duas horas e meia de perguntas sobre perguntas e muitas discussões proveitosas "nos dois sentidos", foram incentivados a buscar outros Institutos da cidade. A avaliação posterior à visita foi muito positiva e desdobrou-se em visitas a vários outros Institutos de pesquisas, visando um maior interesse pelo ambiente ao seu redor.

7- APAE _ Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais _ Unidade Brooklin _ SP _ 25 excepcionais adolescentes _ no MIBIO

Em 1999, acompanhados de seis professores e dois monitores fizeram visita aos laboratórios do Museu e tiveram contato com animais vivos e fixados. Foram orientados quanto ao reconhecimento de insetos e aracnídeos, visualizaram as atividades de um formigueiro vivo e manusearam espécimes de bicho-pau (Phybalossoma sp.) vivos, puderam observar as diferenças entre machos e fêmeas, entre filhotes e adultos e ovos não eclodidos. Foram orientados quanto ao perigo de alguns insetos que vivem próximos de residências e sobre a necessidade deles na Natureza, uma vez que fazem parte da cadeia alimentar.
A avaliação feita pelos professores, durante a semana da visita, demonstrou que, mesmo com a deficiência apresentada pelos alunos, os sentimentos quanto ao conhecer científico, a preocupação com o meio ambiente e a afetividade foram marcantes nos trabalhos apresentados pós-visita. Fato que impressionou a equipe do Museu foi a riqueza de detalhes representada nos desenhos e nas interpretações daqueles alunos (Figs. 1,2 e 3).
Avaliação
Dedicar espaço e tempo ao atendimento de pessoas com necessidades especiais de aprendizado trouxe aos pesquisadores do MIB e do MIBIO uma vivência rica, tanto pedagógica, como científica. A receita do atendimento tem ingredientes precisos, porém passa por procedimentos que sempre levam à improvisação e à descoberta de novos horizontes didáticos, materiais e de forte envolvimento emocional.
Qual um laboratório aeroespacial que pesquisa soluções para problemas imediatos. Sempre termina por suprir a população humana com subprodutos que ajudam sobremaneira na resolução de problemas do dia-a-dia, os atendimentos aqui descritos trouxeram um sem número de soluções para problemas museológicos e museográficos, também para os visitantes ditos "normais", tanto do MIB e MIBIO, como da Estação Ciência - USP _ ECUSP (Federsoni Jr., 1998).
Os jogos testados e/ou aplicados com grupos de deficientes podem demonstrar as mesmas definições a crianças de pré-escola ou a analfabetos e podem servir como motivo desencadeante de preciosos jogos, aplicados pelos Monitores do MIIB (Federsoni Jr., 2000) ou da ECUSP.
Muitas das vitrinas do MIB, das gavetas do MIIB e da ECUSP foram criadas ou reformuladas após um determinado atendimento especial. Esse mesmo atendimento levou os pesquisadores a elaborar o projeto MIBIO-2000, com implantação em andamento. A maior parte das aulas ministradas aos Monitores desses Museus tem seu conteúdo baseado nas experiências aqui descritas. E, pela prática, pode-se comprovar que um visitante de um Museu deste tipo é, de um modo ou de outro, um "deficiente", no sentido amplo da palavra, pois dispõe de informações entrecortadas e entremeadas por crendices, lendas, folclore ou insuficientes, de maneira que o risco de vida ao qual está sujeito é muito grande, quando se considera que sabe "mais ou menos" a respeito de animais que podem causar danos imediatos à saúde, deixar seqüelas graves ou levar ao óbito.
Outro aprendizado retirado dessas visitas especiais, pelos pesquisadores, foi o de que, sempre que possível, é conveniente e aconselhável despertar nas pessoas ditas "normais" um interesse maior pelos que não são aquinhoados com essa normalidade. Assim, foram introduzidos tópicos de aulas sobre deficientes físicos, em todos os graus e níveis, para profissionais que se inscrevem nos cursos promovidos pelo Museu, ministrados em três versões, para biólogos, educadores, arquitetos e interessados em geral. Um curso bienal, com carga horária entre 120 e 160 horas/aula, dentro de um Curso de Pós-Graduação - latu sensu - "Serpentes, Aranhas e Escorpiões", promovido pelo Instituto Butantan, nos anos pares,na Disciplina: "Museologia e Educação Ambiental". Este curso longo deu origem ao Curso "Museu como modelo de Educação Não Formal", concebido com duas cargas horárias distintas, a saber: mensal, com quatro horas/aula, dando uma visão descritiva/teórica sobre a Museologia; e outro de 40 horas/aula, teórico-prático, onde os alunos são divididos em quatro grupos, que devem conceber, planejar, montar e "inaugurar" quatro Museus distintos, num dado espaço, num tempo determinado. Esse Museu deve preocupar-se em fazer um planejamento para a recepção de visitantes com necessidades especiais de aprendizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em quinze anos de experiências com deficientes, seja em aulas, seja em jogos ou visitas monitoradas, pode-se chegar a uma conclusão drástica, que é o denominador comum entre todas as deficiências, em qualquer grau de comprometimento: deficientes exigem ser tratados como pessoas comuns principalmente aqueles que apresentam um grau de compreensão maior por não terem comprometimento mental.
Outro fato indiscutível é que em todas as ocasiões, onde foi feito algum tipo de promoção pública, pela mídia, a respeito do programa de atendimento do MIB, o número de visitas caiu ou simplesmente não houve visitas por alguns meses. Concluímos, por nossa experiência e pela de outros colegas de diversos Museus e outras instituições que fazem esse tipo de atendimento, que nunca se deve ter uma área ou um local destinado somente a deficientes. Isto discrimina quem está dentro da área ou do programa. O simples fato de mencionar um atendimento "diferente" faz com que a discriminação se faça presente. Em conversa com um deficiente visual, que se propôs a nos ajudar nos planejamentos, ficamos sabendo que ele se sentia muito mal em locais com atendimento especializado, pois era observado sem poder observar e, com palavras dele: "- Num lugar assim, todos sabem que sou cego!... Devem ficar me olhando e sentindo pena de mim... Então, por melhor que seja o lugar, eu não vou!!!" - e completou com uma frase que deve merecer a avaliação de todos que trabalham em locais diferenciados desta maneira. Disse:
"-Eu não pertenço a um grupo de deficientes. Se pertencesse e fosse visitar o lugar em grupo, não me sentiria tão mal, mas sozinho, não vou mesmo!..."
Este deve ser um ponto a ponderar com muito carinho e deve haver uma discussão ampla entre os técnicos da área (Museólogos e Pedagogos das instituições especializadas). Numa experiência que tivemos em 1994, com um grupo de deficientes auditivos, adultos, trabalhadores (por isso atendidos num final de semana), quando dávamos aula, apresentando slides e "falando" com eles por intermédio dos gestos de uma das suas professoras, houve parada no fornecimento de eletricidade e, logicamente, a aula foi interrompida. Essa obra do acaso fez com se estreitassem os laços entre alunos e pesquisadores do MIB. Isto motivou talvez a conversa mais produtiva dentro destes quinze anos. Os alunos propuseram-se voluntariamente a nos ajudar.
Disseram que éramos "muito bonzinhos" tentando nos fazer entender a qualquer custo. Eles diziam que tinham consciência de sua deficiência e que gostavam do desafio de entender pessoas interessadas em ajudá-los. Isto nos levou a uma conclusão estupenda e que mereceu muita reflexão: esses deficientes, que não têm comprometimento de raciocínio lógico, vivem seu mundo e nele fazem seus "jogos" particulares (e gostam dos jogos que concebem!). São jogos em que, instintivamente, utilizam outros sentidos e partes do cérebro que aquelas pessoas "ditas normais" não utilizam. São jogos sensoriais, de memória, de percepção rápida e que exigem respostas ápitas por parte de seu raciocínio.
É desta maneira, pelos jogos que criam, isolados em seu mundo, que deficientes visuais "vêem", que percebem as cores pelo sentido do tato, por intermédio de freqüência das ondas de luz. É pelos exercícios freqüentes com os outros sentidos que se relacionam tão bem com o mundo ao seu redor. É assim, também, com jogos elaborados que deficientes auditivos criam novos gestos que se alastram entre eles, como um dicionário gestual. Percebemos que as várias instituições atendidas têm gestos estereotipados para quando estão em colóquio normal com pessoas de fora do grupo. Mas, cada instituição tem uma espécie de "dialeto gestual" característico, criado por aquele grupo determinado. Concluímos, em uma visita, em que pessoas pertencentes a uma instituição, transferiram-se para a que nos visitava, que a "conversa" era mantida com os gestos estereotipados e quando os veteranos gesticulavam entre si, utilizavam o "dialeto" próprio.
Uma das professoras que os acompanhava nos explicou que esses grupos criam gestos dialéticos, gírias e expressões idiomáticas e que os utilizam somente entre eles, sendo dificílimo, para os próprios educadores daquela escola, penetrar nesse mundo particular e interpretá-los de maneira conveniente, principalmente entre adolescentes que, além da deficiência, têm a rebeldia característica da idade.
A essa adaptação, que denominamos "jogo", os deficientes motores também a desenvolvem. Atendida toda uma família, de São Miguel Arcanjo, SP, cujos pais são irmãos, com sete filhos de ambos os sexos, todos portadores de teratogenias gravíssimas, em todas as partes do corpo. Uma das filhas, a primogênita, apresentava ausência total dos quatro membros, tendo somente o tronco atrofiado e cabeça sem deformação e portadora de uma fisionomia belíssima e serena, era transportada por uma cadeira de rodas, onde mantinha-se atada por cintos. Numa conversação bastante proveitosa para ambas as partes, ela afeiçoou-se a um dos pesquisadores e, com ele, passou a manter correspondência. A caligrafia era perfeita. A amizade estreitou-se e uma pergunta fez-se possível sem constrangimentos: "- Quem escreve suas cartas? - e a resposta foi pronta: "- Eu!... Com a boca!..."
Esse "jogo", elaborado por ela mesma, em seus momentos de isolamento, a fez não só portadora de caligrafia invejável, mas criadora originalíssima de uma possibilidade de comunicação com seus semelhantes. Isto a levou ainda a desenhar e pintar de maneira sublime.
Ora, quem cria seus próprios "jogos" merece ser visto, ouvido, estudado e respeitado de maneira humana e científica, para que deles se possa aproveitar esse aprendizado de "dois sentidos". Assim, criaram-se também "jogos" entre os pesquisadores do MIB e do MIBIO. E esses "jogos" têm trazido resultados benéficos a ambos os lados do aprendizado.
Àqueles que, de uma ou de outra maneira, chegam ao MIB ou ao MIBIO, dá-se tratamento natural, sem ênfases a nenhuma das declarações feitas ou aos gestos. Nada se faz que possa representar um atendimento especial. E, na medida em que os visitantes se interessem em ajudar o corpo técnico, são aceitos de maneira natural e entusiasmada. Essa troca de informações não só os une a nós (às vezes por períodos longos), como serve de elo com outras pessoas que passam a nos procurar. Assim, chegamos à conclusão de que a melhor propaganda é aquela feita entre essas pessoas tão especiais, que "descobrem por si" os nossos serviços. Assim, elas entram no nosso "jogo".
O resultado de várias tentativas de abordagens criou nosso "jogo" e trouxe como norma básica para as aulas a menção, sem ênfase, somente dito da maneira mais natural possível, que serpentes são absolutamente surdas; de que os ofídios têm uma visão praticamente nula em determinadas situações e que elas, não tendo apêndices locomotores, foram aquinhoadas pela natureza evolutiva, com outros meios de locomoção e que são tão evoluídas e atuais que são animais nossos contemporâneos, portanto viáveis e auto-suficientes. Cita-se de passagem que algumas aranhas, apesar de terem tantas pernas, não têm veneno tão potente ou força suficiente em seus apêndices locomotores, para caçar suas presas, necessitando, assim, de uma armadilha: a teia. Isto dito em uma aula de Biologia normal tem uma conotação; porém, numa dessas aulas especiais, cai como raio de confraternização com esses animais; é aí que se inicia o nosso grande "jogo".
Em avaliações no final dos cursos sobre Museus, pode-se averiguar que a fatia da sociedade conhecida como "pessoas com necessidades especiais de aprendizado" sempre é aquinhoada com cuidados especiais pelos grupos de alunos desses cursos. Essa vivência tem-nos mostrado que o impacto emocional causado pela simples menção do problema aos alunos (profissionais da área de educação), depois de tratado tecnicamente e discutido como "somente mais um problema" a ser resolvido, é transmudado para uma preocupação individual de como poder resolver problemas de maneira técnica e racional.
Cada experiência particular (familiar, afetiva ou profissional) é trazida à baila pelos alunos e discutida entre todos. São tentadas soluções teóricas e, logo em seguida, colocadas em prática pelos grupos que constroem seus Museus. A cada novo Curso, há um aumento significativo de soluções para os pesquisadores do Museu que fazem desta prática, também, um "jogo" de aprendizado nos "dois sentidos".

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Fernando que desconhecia o fato de serpentes não terem pernas e à Maria que voltou do ônibus ao Museu para tocar em uma serpente, naquele primeiro atendimento que fizemos, em 1985. À Maria Ordaíza que nos inspirou tanto com suas cartas escritas com a caneta segura entre os dentes. Em nome deles agradecemos a todos os deficientes que nos visitaram e nos ensinaram a ler seus gestos, entender seu mundo e a enxergar mais com os olhos da alma do que com os olhos biológicos. À Rosana que nos ensinou que a vontade de escrever bonito ultrapassa os limites de não se ter mãos perfeitas e nos mostrou raios luminosos, canalizados de sua alma para seus olhos disformes, mas vivos como a própria vida.
Aos dois grandes visionários da educação, Kipling e Baden-Powell, agradecemos pela ajuda pedagógica, que nos permitiu desenvolver todo o nosso programa de atendimento especial.
Às funcionárias de apoio do MIB pela ajuda em todos os momentos, desde a preparação do material biológico (especialmente, Maria de Lourdes Campos) até o acompanhamento e monitoramento dos grupos.
À Fundação VITAE* pela ajuda prestada em várias fases deste programa de atendimento. [VITAE não compartilha necessariamente dos conceitos e opiniões expressos neste trabalho que são da exclusiva responsabilidade dos autores.]

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Recebido para publicação em 26/1/200O

http://www.biologico.sp.gov.br/biologico/v62_1/museu2.htm#Relatos de Casos
Revisada em July 13, 2000

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